As preocupações e pontuações de Ruth Behar estão bastante vinculadas a uma noção relativamente estável da categoria “mulher”, ainda que a antropóloga aposte na diferença e na multiplicidade, sendo que muitas de suas críticas e proposições surgem a partir do fato de ela mesma ser racializada como “latina” nos EUA. Porém, acredito que, ao lidar com a menstruação como material de pesquisa, é necessário desestabilizar e alargar a categoria “mulher”. Assim, podemos nos beneficiar das críticas advindas de feminismos indígenas, negros, comunitaristas e também de críticas queers, e caminhar ao lado de desvios, escapes e invenções. As mulheres são múltiplas, as menstruações são múltiplas, e os corpos que menstruam são múltiplos. 

As pesquisadoras Ela Przybylo e Breanne Fahs (2020) propõem um caminho metodológico para abordar a menstruação e pessoas menstruantes que coloque em evidência tal diversidade, evitando cair em essencialismos. É o que as pesquisadoras chamam de cranky approach. Tal formulação aparece de modo ainda pouco lapidado pelas autoras em um artigo que analisa algumas propagandas de produtos para a menstruação e constata uma recorrência ao apelo a certa “positividade menstrual”. Pude estar em contato com essa formulação de modo mais aprofundado durante um painel que participei sobre menstruação no evento científico 4S, no ano de 2021, em que Ela Przybylo também participou. 

A palavra cranky é muito interessante e repleta de significados:

CRANKY 

1a: given to fretful fussiness; readily angered when opposed;

1b: marked by eccentricity;

2: full of twists and turns;

3: working erratically;

4: crazy, silly.

Além das definições acima, cranky pode significar manha, capricho, mas também alguém fraco, abalado. No linguajar corrente, uma cranky person é “uma pessoa que não está sempre furiosa ou indignada, é apenas mais fácil irritá-la que o normal: quando está com fome, cansada ​​ou desgastada, não é preciso muito para deixá-la ‘louca’”. A partir dessa definição, uma tradução possível para cranky approach seria uma abordagem irritada ou irritável, porém, cranky carrega consigo muito mais do que tal acepção que, ligada à menstruação, acaba por reforçar estereótipos. 

Conversando com minhas amigas sobre isso, chegamos ao consenso de que uma tradução possível para português seria “abordagem rabugenta”. Tal tradução tira um pouco do brilho de uma palavra que parece tão boa para os objetivos de Przybylo e Fahs: nos manter – nós, que temos a menstruação como centro das atenções – permanentemente alertas ao risco de estarmos produzindo um tipo de saber que “force a mão” para uma “positividade menstrual” que não contempla grande parte da experiência de pessoas que menstruam. Afinal, “dor, vazamento, trauma, desconforto, disforia e sentimento dissidentes” (2020, p. 386) fazem parte do dia a dia de muitas de nós. 

Assim como as autoras, também aposto em uma abordagem manhosa, caprichosa, irritadiça, excêntrica, cheia de idas e vindas, errática, doida, besta, abalada, que seja capaz de trazer à tona uma multiplicidade de menstruações possíveis. O ato de não suprimir tal dimensão da experiência vivida, ou tais vulnerabilidades, para dialogar com Behar, é, a meu ver, um movimento no sentido de criar espaços de permissão para causar problemas compartilhados. O problema de resmungar está em que, provavelmente, alguém vai ouvir nosso barulho. E o silêncio indesejado não nos cabe mais. 

Pode ser que tudo isso que envolve a menstruação, as menstruações diversas, pareça banal. Pode parecer uma bobeira advogar por uma abordagem rabugenta diante de tantas coisas acontecendo. Mas, pensando junto às filósofas Isabelle Stengers e Vinciane Despret (Stenger et al 2014), uma das coisas que nós, feministas, estamos aprendendo ao entrar e permanecer dentro das universidades é exercitar nossa capacidade de fazer rebuliço sobre questões que aparentemente são banais, mas que, na verdade, estão profundamente enraizadas em situações de opressão e manutenção de poder. O modo como a menstruação é tratada em ambientes de trabalho e de produção de conhecimento acadêmico é uma dessas situações. Para as filósofas, ao nos organizarmos coletivamente dentro de espaços que são violentos contra nós, tornamo-nos capazes de “sentir e dizer juntas: ‘isso importa’” (Stengers et al., 2014, p. 54). Assim, nos tornamos hábeis em fazer um barulho cheio de alegria sobre aquilo que nos implica. Para conseguir isso, é preciso cultivar também uma “falta de gratidão”:

Women as liable to make a fuss are not heroic figures, rather they are damned nuisances. They don’t accept, at least not completely, the place that has been made  for them, and the silence that goes with it. They obtained the “right” to think from 9 to 6, like men — even if it means, according to the quasi norm of the double shift,  taking care of their children and their pots afterwards, but they lack gratitude toward those who have admitted them to their ranks. They do not let themselves, not completely, be assigned to the role to which they have acceded. And it is perhaps  this refusal of assignation that constitutes one of the most remarkable themes of our inquiry. (Stengers et al., 2014, p. 152)

Uma abordagem rabugenta das menstruações também é uma forma de recusa das designações dadas a priori, pois uma das principais qualidades “rabugentas” é justamente externalizar essa condição. Capricho, manha, barulho, confusão, alvoroço, excentricidade, mudanças súbitas de rota e, às vezes (porque não?), um pequeno ataque de fúria. É um desafio grande balancear esse ser e estar barulhenta com uma postura que não fira, a princípio, os sentimentos estabelecidos, como busco na hipótese-teste desta tese. Stengers e Despret apostam em soluções coletivas e contingentes para que nós sejamos capazes de “continuar a hesitar” (Stengers et al., 2014, p. 153).

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O material que produz uma trama rabugenta é difícil de lidar. Para quem está acostumada com materiais mais obedientes, o da trama rabugenta pode assustar de começo. É como fazer tricô com uma agulha de metal e um fio liso. Se a pessoa não tem muita habilidade, o nó vai escorregar, o trabalho vai se desfazer. Ou como fazer tricô com uma agulha de bambu e um fio cheio de pelinhos. O fio não vai deslizar, ficará preso, emperrado, a coisa não vai fluir. Mas, insistindo no trabalho, aos poucos o que era ruim de lidar vai se transformando em um desafio interessante. Dá para tentar procurar uma agulha mais adequada para o fio, e vice-versa. Mas também dá para entender o que no próprio corpo precisamos nos atentar para que o trabalho funcione. Às vezes é uma questão de como manipulamos o que temos à mão. A tensão que colocamos no fio, ou na agulha. A força com que seguramos as coisas. Colocar para trabalhar músculos que estavam acomodados, ou para descansar alguns que estavam sobrecarregados. Mas nem todo dia conseguimos dissipar a tensão. Às vezes só não dá, e o trabalho tem que ficar de canto. Todo mundo precisa de descanso.

Uma cesta feita de um material rabugento é uma daquelas cestas que você tem orgulho de mostrar que fez. Ela pode não ser a mais bonita, a mais estável, a mais estruturada – convenhamos que materiais mais dóceis são melhores para obter esses resultados –, mas certamente é uma das que deu mais trabalho para fazer. Talvez olhando de fora assim nem pareça, mas, quem sabe, sabe. Existe uma empatia forte entre quem compartilha o conhecimento de como lidar por bastante tempo com esse aspecto rabugento da realidade. De tanto lidar, criamos estratégias. A cesta feita de material rabugento é ela mesma rabugenta. Um fio liso demais ou um fio muito texturizado não serve para o dia a dia, eles vão produzir trabalhos muito bons para certos momentos, e apenas isso. Não tem como exigir que estejam lá o tempo todo. E tudo bem. Tem gente que até desenvolve uma certa simpatia pela cesta rabugenta. O tempo e a convivência fazem com que o jeito doidinho da cesta, que se recusa a carregar tudo o tempo todo, vire fonte de diversão e amor. Tá. Tem horas que é difícil. Mas é a vida.

Usar a cesta rabugenta como ferramenta metodológica de pesquisa me ajudou a entender o tempo das coisas. Nem sempre dá para fazer o que se quer. Também me ajudou a coletar e carregar, quando possível, histórias difíceis de lidar. Seria mais fácil, por exemplo, tratar a menstruação a partir de uma ótica única, por exemplo, uma abordagem muito biomedicalizada, ou uma abordagem muito positivada. Diante de tantas violências, tanta essencialização, tanta carga histórica de opressão que as menstruações carregam, confesso que é bem tentador apenas mostrar a beleza do sangue menstrual e as coisas boas que um ciclo menstrual pode trazer para a vida das pessoas e das comunidades. É bem tentador ficar acomodada em uma visão sagrada da menstruação e seu potencial de poder. Uma coisa meio “sagrado feminino”. Seria como escolher materiais dóceis. Mas, ao escolher materiais rabugentos para tecer uma cesta rabugenta, acredito que os ganhos sejam muitos, pois os aprendizados são muitos também. O principal deles, talvez, seja aprender a se abrir mentalmente e fisicamente para outras possibilidades. E respeitar o próprio tempo para isso.